Há mais de duas décadas o Grupo de Valorização Negra do Cariri se movimenta para romper as estruturas coloniais forjadas e impostas pelo sistema hegemônico euro-cristão-monoteísta racista, patriarcal, classista e heterocisnormativo.
Partimos da compreensão de que por ser o racismo um problema estrutural, ele só pode ser enfrentado a partir de uma perspectiva também estrutural, e por isso ao longo dessa trajetória vimos construindo redes de apoio e atuação com as mais diversas pautas, entidades e espaços, como o poder público, escolas, universidades, movimentos sociais de mulheres, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, sem terra, sem teto, de catadores, imigrantes, povos de terreiros, de diversos cultos e religiões, sindicatos, entre vários outros.
O racismo é algo que nos atravessa como um todo enquanto sociedade. Não é um problema só nosso, não fomos nós que o criamos, não podemos nos fechar apenas a negrura do debate. A branquitude e todos os espaços que sempre invadiram, ocuparam e (des)mandaram é quem tem que entender, refletir e a partir de seu espaço de privilégio passar a usar do seu poder para atuar na luta antirracista.
Com base nesses pressupostos é que celebramos o ato de primeira posse popular da Defensora Pública Geral do Estado do Ceará (Dra. Elizabeth Chagas), que teve nosso GRUNEC como anfitrião, ocorrido no dia 15 de dezembro de 2021 no Terreiro Encantado das Pretas, município de Crato-CE.
A posse popular é uma forma de estreitar as relações entre a Defensoria Pública e sociedade civil, já que a Defensoria é a instituição do sistema de justiça que necessita compreender as demandas populares, posto que é ela quem tem contato direto e as vias para atender e fazer cumprir os comandos constitucionais de ser instrumento de acesso à justiça para os necessitados, expressão da democracia e garantidora dos direitos humanos.
E quem são os humanos dos direitos humanos?
Infelizmente a historicidade brasileira nos demonstra que o alcance aos direitos humanos ainda é uma questão de privilégios, já que as garantias básicas dos cidadãos previstas na Constituição Federal e nos tratados internacionais sequer são efetivadas, pois até mesmo esse status de cidadania não nos contempla.
O que confirma isso são os dados estatísticos atuais (CONECTAS, 2014; IBGE, 2019; IPEA, 2011; IPECE, 2020) que apresentam a dura realidade do povo negro, que, apesar de ser a maioria da população do Brasil, é minoria nos espaços de poder, de tomadas de decisões (como nos cargos públicos e de gerência), é minoria no alcance de políticas públicas fundamentais para à vida digna, como alimentação, saúde, educação e moradia digna.
Em contrapartida, os índices sobre encarceramento, homicídio, subemprego, situação de rua, baixa expectativa de vida, violências, anafalbetismo, são os que apresentam a predominância da população negra, demonstrando que a precarização da vida do nosso povo é um projeto nacional que vem sendo eficaz em ser perverso desde o século XV.
Por isso, no dia da posse popular da DPGE-CE, o GRUNEC junto aos outros movimentos sociais enfatizaram as pautas da agenda negra do Cariri e do Ceará para que a instituição abra os olhos para o que nos é essencial.
Nesse sentido, Valéria das Neves Carvalho, membra fundadora do GRUNEC, falou sobre as dificuldades dos moradores da zona rural do município de Crato, como a falta de transporte público; denunciou o esquecimento do poder público com as comunidades indígenas e quilombolas da região do Cariri, que por muito tempo não tiveram acesso a água potável por exemplo, as quais as políticas públicas nunca chegam; enfatizou ainda a preocupação do grupo com as políticas de cotas raciais nos vestibulares da Universidade Regional do Cariri, que ainda não implantou efetivamente a comissão de heteroidentificação nos certames, o que vem ocasionando em fraudes nos processos seletivos desta instituição.
Maria Raiane Bezerra Felix, vice-presidenta do GRUNEC, falou sobre a importância da DPE-CE de fato popularizar a instituição para que o povo realmente possa participar ativamente dos meios de comunicação democrática, principalmente para a juventude negra que é o grupo que mais morre e é encarcerado. Essa participação popular na instituição foi pautada como uma forma de levar as demandas dos grupos historicamente mais vulneráveis para serem de fato combatidas. Ressaltando que “o nosso maior desejo é que algum dia a nossa população negra, periférica, mulheres, LGBT+, indígenas, imigrantes e quilombolas sejam os humanos dos direitos humanos, que essas pautas dos direitos humanos nos alcance para que tenhamos uma vida digna.”.
A Frente de Mulheres do Cariri, na figura de Verônica Isidório, participou ativamente do evento, mediando o espaço, acolhendo os/as convidados/as e abordando todas as problemáticas em torno das desigualdades estruturais e interseccionais que assolam não só o Cariri, mas todo o Estado do Ceará e o Brasil.
Sarah Menezes da Rede de Mulheres Negras do Ceará ressaltou a importância institucional da Defensoria Pública para população mais vulnerável, sobretudo o povo negro que é maioria nos índices de violência e encarceramento. Falou que “o compromisso é conosco, com o povo. Sde o nosso povo demanda por justiça, para que enfim cante e não seja só de dor, estamos aqui para olhar para vocês defensores e defensoras e dizer que confiramos, mas estaremos atentas, observando e cobrando”
Alassandra Felix, da Frente Estadual pelo Desencarceramento e também da Rede de Mulheres Negras do Ceará enfatizou o desejo de ver “uma defensoria combatente, atuante, próxima. Por uma juventude viva, pela vida e pela liberdade nas periferias.”
Vanda Lucia e Rosa da Associação dos Índios Kariri também estiveram presentes e falaram das dificuldades das comunidades indígenas no acesso às políticas públicas.
Lucineide Silva, conhecida como Peteca, da Associação do Baixio dos Oitis/Casa de Quitéria, ressaltou a essencialidade de enfrentar o histórico dos conflitos agrários da região, lembrando da luta pela terra livre enfrentada pela comunidade Chico Gomes.
Vilanir do Movimento Negro Unificado Ceará, denunciou que as políticas de segurança pública do Estado do Ceará é uma das mais violentas e encarceradoras do Brasil, enfatizando o histórico de violência da Polícia Militar cearense que tanto mata, assim como do sistema de justiça que é extremamente punitivista e racista.
Clea do Comitê de Migração e Refúgio falou sobre os projetos de assistência às famílias de imigrantes que se encontram na região do Cariri e todas as dificuldades enfrentadas para permanecer aqui com dignidade, pois falta moradia e emprego, o que cria óbices para acessar educação, saúde e outros direitos.
Doné Herlania do Candomblé Quilombaxé Kwe seja Omi Yponda denunciou o descaso do sistema de justiça com os crimes de racismo religioso e intolerância religiosa na região do Cariri, ressaltando o quanto são recorrentes os ataques aos templos e terreiros de religiões de matrizes africanas, revelando que sempre que vão registrar as ocorrências, os delegados, inspetores e escrivães de polícia simplesmente riem do acontecido e não fazem nada para prevenir, combater ou punir essas violências.
Mara Guedes, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher Cratense, também se pronunciou contra os crimes bárbaros de violências contra as mulheres da região do Cariri cearense, já que os números de violência doméstica e feminicídios infelizmente só aumentam ao longo dos anos.
Além dessas organizações, também estiveram presentes diversos defensores públicos do Ceará, representantes da Coalização Negra por Direitos, Fuxiqueiras da Chapada, Associação Comunitária da Boa Vista, Associação de Proteção à Vida (APROV), Associação de Moradores da Vila Belo Horizonte, Rádio Cafundó, Verde Vida, ONG Beatos, Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa (EPUCA), Comunidade Quilombola Souzas Porteiras, Grupo Raízes dos Palmares, Sociedade Independente do Conjunto Novo Crato, Associação Cristã de Base (ACB), Assentamento 10 de Abril, Associação Novo Horizonte, Cáritas Diocesana do Crato, Associação do Chico Gomes, Terreiro Omim Dandereci Mutaleji, Sociedade São Vicente de Paula, Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, Secretaria de Cultura do Crato, Conselhos Municipais do Idoso, da Educação, da Saúde, de Segurança, Conselho Tutelar, Universidade Federal do Cariri, Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais (NEGRER), Grupo de Estudo e Pesquisa em História, Cultura e Ensino Africano, Afrobrasileiro e Americano (GEPAFRO), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs) do Instituto Federal do Ceará (IFCE) de Crato e Juazeiro do Norte, Nhiestal, GEA, COREMU, SESC, Articulação de Empregadas Domésticas, SCAN/RECID/ARTISTA, Catadores de materiais recicláveis, Coletivo Camaradas, vários sindicatos (STTR, SINDURCA, SINDSCRATO, SINTROEC, dos comerciários, dos bancários da Construção Civil), Ordem dos/as Advogados/as do Brasil (OAB), CEPPIR, Coordenadoria dos Movimentos Sociais, DDM Crato e Juazeiro do Norte, NUDEM, Projeto Paulo Freire, Movimentos dos Trabalhadores Rurais.
Lamentamos a falta de algumas entidades que foram convidadas, como a Prefeitura de Crato, Prefeitura de Juazeiro do Norte e Universidade Regional do Cariri, pois sabemos que todas essas pautas perpassam pelo poder público e pela educação superior, e só com esse diálogo popular é que podemos avançar nas políticas públicas de promoção à igualdade.
Por fim, mas não menos importante, para além das denúncias também foi falado de AMOR. Verônica das Neves Carvalho, membra fundadora do GRUNEC, anunciou que “o Terreiro é um lugar pra gente ser feliz, um lugar de construção da felicidade”. O Bem Viver e o amor-ação são conceitos principiológicos do GRUNEC, utilizados como forma estratégica de compreender o amor como face oposta às dores e violências que assolam e adoecem a sociedade.
Como bem nos ensinou bell hooks (2006):
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.
Portanto, amar em tempos de guerra é um ato revolucionário!
O evento ainda foi regado de muita riqueza cultural local, com apresentação dos Irmãos Anicetos, coral musical infantil, com as Meizinheiras do Pé da Serra, Carrapato Cultural, Mulheres do Coco da Batateira, Terreiro Cultural Arte e Tradição, Vila da Música, Grupo Urucongo de Artes
Referências
CONECTAS, Direitos Humanos. MAPA DAS PRISÕES: novos dados do Ministério da Justiça retratam sistema falido. [online], 2014. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/mapa-das-prisoes. Acesso em: 3 jan. 2022.
HOOKS, bell. Vivendo de amor. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maysa; EVELYN C. (Orgs.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas Editora / Criola, 2006.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. [online] Estudos e Pesquisas, n.41, IBGE, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 3 jan. 2022.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4 ed. Brasília: IPEA, 2011. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf. Acesso em 3 jan. 2022.
IPECE - Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Uma análise dos indicadores sociais do Ceará por cor e raça declarada. Fortaleza – Ceará: IPECE, 2020. Disponível em: https://www.ipece.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/45/2020/12/ipece_informe_187_22_dez2020.pdf. Acesso em 3 jan. 2022.
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